“COMBOIO DA MEMÓRIA”

Abstract: A proposta assenta numa atitude de guerrilha artística em Realidade Aumentada, que se inspira metodologicamente em “ArOCCUPY May Day” (Skwarek & Armstrong, 2012) e em “Namaland” (McGarrigle, 2011). Contudo, tendo como pano de fundo uma questão local e um espaço específico: o centenário Ramal da Vila da Lousã. Num contexto obscuro de profunda crise nacional e internacional, onde a cultura e os direitos humanos são cada vez mais ignorados em função de fatores económicos, proponho assim um exercício em torno da forma como o público se pode relacionar com determinados espaços através da RA, instalando, simulando, expondo, decorando, infestando e, porque não, também desmascarando o poder das instituições envolvidas.
O Ramal da Lousã é um troço ferroviário cuja construção foi oficialmente anunciada em 1873 sob decreto régio de Luís I (1861-1889) e que, após 15 anos de interregno, a 16 de dezembro de 1906, foi finalmente concluído, ligando o Concelho da Lousã a Coimbra durante mais de um século. Contudo, este histórico caminho-de-ferro foi encerrado em 4 de janeiro de 2010 com o propósito de ser atualizado para um sistema de melhor qualidade (metro de superfície) – designado por “Metro Mondego”. Ainda que aparentemente apropriado, a prossecução deste projeto deparou-se com algo que muito poucos poderiam considerar como um pequeno obstáculo: a empreitada foi iniciada sem que estivessem assegurados os fundos necessários à sua conclusão. Como consequência, após mais de 120 milhões de euros gastos, a obra encontra-se completamente abandonada e todas as populações afetadas utilizam os seus próprios veículos ou viajam em autocarros com menores condições de conforto para percorrer o mesmo trajeto, perdendo muito mais tempo e sujeitando-se a maiores riscos de segurança (associados aos transportes rodoviários). Tudo isto agravado por um cenário de agravamento das condições ambientais, como consequência do aumento de emissões de CO2. Efetivamente, quatro anos após o início das obras, os cidadãos ainda permaneciam sem qualquer serviço ferroviário e, à luz da enorme crise económica que Portugal atravessava, era muito provável que assim permanecessem durante muitos mais anos.
Tendo em conta a degradação das obras do metro e pretendendo trazer esta questão à ordem do dia, assinalando o quarto aniversário do encerramento total do ramal, o projeto deu início à invasão do antigo percurso desta ferrovia. Para tal, reuni o apoio e a colaboração de diversos cidadãos locais que foram convidados a partilhar conteúdos associados à utilização deste serviço, tais como: fotografias, sons, vídeos e mensagens. Conteúdos esses que foram de seguida reconfigurados em material artístico expressivo que se esperavam sensíveis às questões de lugar, tempo, comunicação e identidade.

Keywords: Realidade aumentada, Arte de Guerrilha, Arte e Tecnologia.

Descrição técnica:
Através de um grupo especificamente criado para este projeto na rede social facebook (que atualmente conta com a participação de mais de duas centenas de membros/colaboradores – onde é explicada a natureza do projeto, as especificidades técnicas e são tomadas decisões acerca das modificações a implementar nas invasões seguintes), foram inicialmente recolhidos diversos conteúdos que refletem reivindicações atuais e memórias de um quotidiano passado (fotos, vídeos, sons, computador, mensagens, etc.). Estes conteúdos foram posteriormente trabalhados e georreferenciados com recurso a um navegador RA para smartphones/tablets, o já referido Layar.
Por outro lado, desenvolvi ainda um website (www.comboio.eliseu.com) onde são inseridos os conteúdos selecionados e onde é possível acompanhar o desenvolvimento do projeto, bem como as iniciativas que lhe estão associadas. Nele, destaca-se um mapa que detalha todos os pontos de interesse, assim como os resultados de uma importante metodologia adotada: passeios culturais.
Contudo, não se trata de um projeto fechado, pois os conteúdos vão-se redefinindo e reposicionando através do resultado do conjunto dos referidos passeios, onde, para além de explanações técnicas, se planificam os conteúdos das invasões seguintes, que serão desenvolvidas mesmo para além da presente investigação, pelo menos enquanto não for reposta integralmente uma ligação ferroviária entre Serpins e Coimbra.
Uma das decisões tomadas durante o primeiro passeio cultural, foi a criação de uma aplicação de raiz em RA que se apropriasse das sinaléticas abandonadas referentes à utilização do antigo caminho-de-ferro e/ou do serviço de metro. Neste caso utilizando a RA não para aumentar a realidade, mas antes para a diminuir, apagando a informação pública existente e delegando-lhe o seu real valor, ou seja: nenhum. Nesse sentido, procedeu-se a uma identificação e respetiva recolha de sinaléticas existentes ao longo do antigo ramal, “censurando-se” em RA a informação nela contida. Porém, o desenvolvimento desta aplicação, da qual chegou a existir uma versão experimental (apresentada na conferência Internacional Avanca 2014), foi abandonado devido à detioração e desaparecimento de uma grande parte das sinaléticas.
Entre as diversas atividades promovidas, a inauguração de um monumento, a 23 de Julho de 2016, pelo movimento cívico “Lousã Pelo Ramal” foi, até agora, o ponto mais alto. Uma estátua em homenagem a Penélope, símbolo de esperança e resiliência. Todavia, a estátua inaugurada foi uma estátua humana, fruto de uma performance artística organizada/coordenada por mim e desempenhada por Maria João Borges (mulher estátua). Sendo que, a sua representação continuará no local em RA até ao dia em que o Ramal voltar a funcionar.
O evento contou com três blocos de atividades que operaram como um convite a uma viagem que, em cada etapa, obedecia a uma linha temporal definida pelo mesmo tempo que levava o comboio do Ramal da Lousã a percorrer as suas estações: de “Lousã” a “Mirando do Corvo” – Inauguração de Estátua a Penélope; de “Miranda” a “Ceira” – Espaço Musical; de “Ceira” a “Coimbra Parque” – Tribuna Pública onde os cidadãos puderam partilhar a sua relação com o Ramal da Lousã e propor outras iniciativas para impulsionar a luta pela sua reposição.
O local escolhido para a iniciativa foi também ele profundamente simbólico, tratando-se de um apeadeiro que, apesar de antigas reivindicações para a sua construção, apenas veio a ser materializado através do projeto Metro Mondego. Ou seja, um local onde nunca parou um comboio – se excetuarmos um acidente em 2002, quando duas carruagens embateram de frente.

Uma aplicação foi desenvolvida em Unity e conta com duas versões publicadas na Play Store da Google. A primeira funcional para uma maioria de dispositivos android (que disponham de GPS, giroscópio e pacote de dados ativo) e a uma segunda, exclusiva para dispositivos Google Tango(121).

Ambas as versões utilizam o serviço de mapas da Google para dispositivos android, detetando assim o posicionamento do utilizador no mundo e exibindo a sua posição (recorrendo à antena de GPS). Caso o utilizador se encontre distante do local onde a estátua em RA se encontra, apenas visualiza o mapa com a sua posição no mundo, que o alerta para a sua distância em relação à obra. Contudo, se a aplicação for lançada no local onde foi inaugurada a estátua, surge um pequeno ícone no mapa, com o qual pode interagir. Esta interação resulta numa visualização tridimensional em RA do modelo da penélope que foi desenvolvido através de fotogrametria.

O dia da primeira apresentação pública do projeto coincidiu com uma manifestação organizada pelo movimento cívico “Lousã Pelo Ramal” no local da abandonada estação da Lousã. Como forma de chamar a atenção para o trabalho e para a manifestação, foram espalhados pelas diversas paragens de autocarro (que se encontram a substituir o serviço de comboio) QR Codes que permitem ativar sons que as paragens de nível faziam quando os comboios paravam nas estações. Ou seja, a camada criada para a plataforma Layar foi apresentada num contexto de forte mobilização social, o que permitiu maximizar o impacto e a experiência decorrentes da convergência entre o espaço geográfico e os dados digitais.

Sendo que, efetivamente, uma das condições para a visualização deste projeto é que, para além da camada publicada no Layar, as aplicações desenvolvidas sejam lançadas no percurso da antiga linha férrea. Uma das razões pela qual, como já referi anteriormente, resolvi estruturar o projeto por passeios culturais, que são divulgados através das redes sociais. O primeiro passeio cultural aconteceu no dia 4 de Janeiro de 2014 e teve como objetivo, para além do que já foi enunciado no conceito, inaugurar/lançar o projeto e ensinar o público a utilizar a aplicação Layar, bem como ajudar a identificar a camada “Comboio da memória”. O resultado desta primeira intervenção foi divulgado através de um poster publicado na International Committee for Design History and Design Studies (ICDHS), durante o mês de Julho 2014, bem como na conferência internacional de cinema | Arte, Tecnologia, Comunicação, Avanca 2014. O que permitiu, para além de dar a conhecer o tipo de investigação em curso, denunciar internacionalmente a situação vivida pelas populações de Serpins, Lousã, Miranda do Corvo e Coimbra. A segunda vertente deste projeto, a estátua de Penélope, encontra-se publicada na Play Store da Google, sendo apenas funcional no próprio local onde a estátua foi inaugurada.

Local: Linha comboio abandonada. Lousã (2014).

Esta instalação deu origem à seguinte publicação:
Eliseu, S., Bastos, P. (2014). Comboio da Memória. In: Avanca | Cinema 2014. Avanca: Edições Cine-Clube Avanca. PP. 1379-1384.

Eliseu, S., Bastos, P. (2014). Comboio da Memória. IN: ICDHS 2014 | Conference-poster.

Encontra-se na totalidade e em detalhe na seguinte tese:
Eliseu, S. (2016). O mundo como uma CAVE – Estratégias Narrativas em Realidade Aumentada. Tese de doutoramento. Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto: Porto. https://hdl.handle.net/10216/102648.